Sobre o artista

Grande vento que não para de soprar

 Parte do texto do livro de mesmo nome, por Px Silveira

“O homem é a cabeça, não tenho dúvida. Mas a mulher é o pescoço que a faz mudar de direção e virar para dizer sim ou não”. Quem diz esta verdade universal em tom de blague, com sua mulher ao lado, é Tai Hsuan-an.

Ele é artista, arquiteto, pesquisador, escritor, filólogo, designer e professor, não exatamente nesta ordem. Entre todos seus atributos, vamos ao começo: Tai é chinês, nasceu em 1950 em um pequeno povoado do sudeste, chamado Hukou, cravado na região dos Hakka, província Guang Dong, em uma família de quatro irmãos.

Hakka é um povo da etnia Han, oriundo da Planície Central chinesa, que durante quase dois mil anos, em grandes migrações, radicou-se finalmente em várias províncias do sul da China e em alguns países do sul da Ásia. A diáspora desse povo fez com que ele ganhasse o nome Hakka, “hóspedes”, assim mesmo, espelhando transitoriedade onde quer que estivesse, pois acreditava-se que um dia voltaria para a sua terra de origem.

Hukou era mesmo pequeno. Uma rua asfaltada começava na perpendicular da pequena estação ferroviária. E outra rua do povoado ia acompanhando os trilhos da ferrovia passando por alguns quarteirões que terminavam no imenso arrozal que o cercava por todos os lados. Era isso.

Como tamanho não é documento, Tai teve ali o cenário ideal para uma infância feliz, bastante próximo da natureza. Menino curioso, em especial, ele se lembra de seus experimentos com libélulas e gafanhotos, fascinado pelas descobertas que iam aos poucos tecendo seu mundo de criança.

Na escola, conforme a tradição chinesa, o menino Tai teve desde cedo detectadas suas aptidões e passou a frequentar aulas diferenciadas, na chamada Sala das Cores, dirigidas àqueles alunos que tinham predileção pelo desenho e pela criação de formas visuais de expressão.

Como se a arte lhe fosse algo hereditário, Tai se lembra de já desenhar mesmo quando ainda engatinhava. Graças à educação chinesa, o que ele aprendeu em primeiro lugar na escola de seu povoado foram as técnicas primárias da pintura, da aquarela, da aguada, do desenho e, de importância fundamental, a técnica da escultura, que usava para fazer brinquedos. Estas foram depois ampliadas pelas técnicas mistas, que iriam lhe ensinar a combinar uma com as outras, e pela xilogravura.

Ao se formar na China pela escola primária (ensino básico com duração de 6 anos) Tai recebe do seu professor de arte, He Zhixiang, em 1962, a seguinte mensagem, que lhe marcou: “A maior felicidade é o resultado obtido pelo seu próprio esforço contínuo. Espero que se esforce com a sua inteligência para se tornar um grande pintor do Séc. XXI e com seus pinceis traçar uma esplêndida vida”.

E assim passaram-se seus primeiros 15 anos. Mas nem tudo estava como deveria. Mesmo após a fundação da República Popular da China, em 1949, permanecia ainda a instabilidade entre a região costeira do sudeste e Taiwan, onde o exército nacionalista havia se refugiado. A guerra civil não parecia terminar e isso trazia muita insegurança para a população. Foi então que seus pais decidiram emigrar para a América do Sul, momento em que o Brasil despontou como um portal para o futuro irradiando grande esperança.

O pai veio na frente e logo depois veio toda família: a mãe e seus quatro filhos. Era agosto de 1965. A viagem foi de navio, com duração de 40 dias e chegada no porto de Santos. Viveram a princípio no estado de São Paulo, com breve passagem pelo Paraná, sempre trabalhando em fazendas, seja na plantação ou na colheita.

Ao cabo de 2 anos, com um emprego de fazer arranjos em uma floricultura, Tai consegue se estabelecer em São Paulo, capital, juntamente com uma de suas irmãs, onde começa a estudar no período noturno. Agora, por sua vez de vir na frente, em pouco tempo ele prepararia a ida de toda família para a capital paulista.

Foram tempos difíceis. Para complementar o pouco salário que recebia, logo ele descobre que poderia vender suas pinturas tradicionais chinesas, com os temas de cavalos, flores, pássaros e paisagens, no espaço dominical ao lado da Biblioteca Mário de Andrade, perto da Feira de Arte e Cultura que acontecia na Praça da República, no centro da cidade. Fazia-as em uma técnica que tinha como único inconveniente o fato de não permitir erro, aprendera no seu antigo povoado e agora a dominava inteiramente, com pinceladas rápidas de aguada e nanquim sobre o fundo branco do papel, o que lhe permitia uma boa produção semanal, toda ela escoada entre seus muitos admiradores de rua, fazendo assim engordar seu ganho mensal.

Eis que a vida vai mudando para melhor. Tai começa o namoro com a Lee, aquela que seria sua futura esposa e mãe de suas duas filhas goianienses, Marina e Lian. Para completar o quadro de nascente felicidade, graças à incansável insistência de seu pai, ele é finalmente admitido como discípulo pelo mestre Sun Chia-chin (1969).

Sun Chia-chin foi um erudito, indo muito além de pintor, escritor e professor. Era reservado e utilizava todo seu tempo para se ocupar de alguma forma de criação. Criara e então ministrava, na Universidade de São Paulo, o curso de língua, história e civilização da China. Para o discípulo Tai ele foi bem mais que um transmissor de técnicas, seria também aquele que o faria se aprofundar nos conhecimentos sobre a arte e a cultura chinesas, embora morando em um país distante.

E a vida vai melhorando rapidamente. Ao mesmo tempo em que lavava louça e varria o chão do ateliê de seu mestre (que por sua vez era um dos discípulos favoritos do grande mestre Chang Dai-chien), Tai obteve em 1976 a diplomação em arquitetura pela Universidade de São Paulo, USP (ele se recorda que escolhera este curso por ser o mais próximo à expressão artística).

 Pelas voltas que o mundo dá -e trazido não pelo Grande Vento, como veremos, mas pelo “pescoço” e a paixão que fazem balançar a cabeça, Tai vem morar em Goiânia, capital do estado de Goiás, no ano de 1977. De fato, quem teve que vir mesmo foi sua mulher amada, Lee Chen Chen, contratada para dar aulas de radiobiologia e bioestatística na Universidade Federal de Goiás. Tai veio acompanhando-a com apenas duas exigências: que gostasse da cidade e que arrumasse um emprego.

O emprego ele arrumou logo: no mesmo ano de sua chegada foi convidado pela Universidade Católica, hoje Pontifícia, a lecionar desenho e pintura em substituição a frei Nazareno Confaloni, recém-falecido. À cidade ele se adaptaria acolhido que fora pela densa arborização de suas ruas e, principalmente, seus quintais amplos e sortidos. E hoje ele confessa que nunca se arrependeu de seguir piamente a direção que lhe foi indicada.

Ainda recém chegado, ele começa a trabalhar no escritório do arquiteto Silas Varizo, então um dos principais profissionais de Goiânia, onde numa bela manhã conheceu os artistas Cleber Gouvêa e Sáida Cunha, seus primeiros incentivadores locais.

E como não poderia deixar de ser -e dessa vez certamente movido pelo Grande Vento (como ainda veremos mais adiante), com a mediação do Cleber o recém chegado não tardou em fazer a sua primeira exposição de pinturas, exclusivamente de paisagens chinesas, realizada nas dependências do Hotel Bandeirantes, Salão Marrom, local dos mais elegantes acontecimentos daquela ainda charmosa e muito pacata capital de Goiás.

A exemplo do mestre Dai-chien no Louvre, Tai apresenta nesta exposição o estilo estritamente obediente à tradição artística chinesa (guohua), sem qualquer aparência de personalização. Mas nos anos seguintes sua produção vai se abrindo à influência de novos protagonistas: a flora e fauna cerratenses e o contato com os artistas locais, o que nos permite afirmar que se Tai nasceu na China, em Goiás ele renasceria.

         A afirmação acima, “como não poderia deixar de ser”, é uma grande verdade em se tratando da trajetória do Tai. Isso porque, filho de pai inventor, fotógrafo, arquiteto avant la lettre, ator e músico multi-instrumentista, Tai, o primogênito, foi dos irmãos o mais próximo do pai e aquele fadado desde pequeno a seguir seus passos, alargando as fronteiras e abrindo novas sendas nos caminhos iniciados pelo seu progenitor, “como não poderia deixar de ser”, repete ele próprio.

Para falar com mais detalhes, essa coisa de ser um artista começou logo aos 3 anos. Só que a palavra ainda não era esta: artista. O mais indicado seria dizer que Tai era um garoto curioso. Rabiscava aqui, desenhava ali, fazia suas pequenas descobertas criativas em todas suas atividades e por todos os lugares que ia. O que não foi nenhum problema para a família, ao contrário, ele foi sempre incentivado neste sentido e nesta direção.

Seu pai, que atendia pelo nome de Wen-lu, um senhor inquieto, cordato, criativo e de visão de longo alcance, o apoiou desde os primeiros momentos, quando o artista ainda engatinhava. Presenteava o pequeno filho com material de desenho e o incentivava a mostrar-lhe tudo o que fazia. Daí em diante, uma longa estrada foi se abrindo.

A caminhada seria mesmo longa, mas o primeiro passo fora dado: Tai desde muito cedo demonstrava vontade e talento, recebia apoio familiar (a mãe, Huang Pen-mei, também lhe cobria de incentivos e o encorajava) e assim, desde onde lhe permite dizer a memória, Tai pintou por toda sua infância e adolescência.

Mesmo assim, já chegado a São Paulo, para ser artista de verdade ainda faltava aquele “algo mais” que lhe daria o impulso definitivo. É que, em sendo chinês, é óbvio que teria que ter nesta história a figura de um mestre. Mas com Tai foi um pouco diferente. Um mestre só, não. Tai teve dois. Ou melhor dizendo, um mestre de contato direto, do qual extraiu o refinamento técnico, e outro ascendente, mestre de seu mestre, a quem não chegou a conhecer pessoalmente, no qual encontrou a postura filosófica e existencial de ser um artista.

Tal dedicação faz de Tai, na atualidade, o mais importante artista chinês em atividade no Brasil e, na China, conforme o tempo foi passando, ele é considerado um dos mais importantes expoentes da Da Feng Tang, escola de pintura que em tradução livre para o português quer dizer Grande Vento.

Para ser aceito como discípulo de Sun Chia-chin, Tai foi indicado por seu pai (de quem o mestre era amigo e dependente do fornecimento de material artístico) e teve que se valer de uma grande paciência para suportar a longa espera até o mestre chegar à sua decisão final. Tempo no qual ele foi avaliado indiretamente pelo futuro mestre e acompanhado em seu comportamento.

Ao final, comunicada a decisão de aceite, foi realizada uma cerimônia com duas cadeiras dispostas no lado principal da sala, sendo uma para o mestre e outra, vazia durante toda cerimônia, para o espírito do grande mestre fundador da Grande Vento, aquele considerado o Picasso do Oriente, Chang Dai-chien.

Chang Dai-chien, ou Zhang Daqian (Neijiang, 10/05/1899-Taipé, 02/04/1983), foi um dos mais célebres e versáteis artistas da China no século XX. Pintor, calígrafo, poeta e colecionador de arte chinesa, começou sua carreira como um pintor tradicionalista, para depois expandir e criar sua própria escola se aproximando do expressionismo abstrato.

Ele morou durante algum tempo no Brasil, depois de passar pela Argentina. Veio como um exilado da China, cuja guerra civil implantou o regime comunista que dura até hoje e transformou a China em potência mundial. Foi sua presença que atrairia para São Paulo o artista Sun Chia-chin, seu discípulo e futuro mestre do Tai.

Ao vir para o Brasil, Chang Dai-chien trouxe junto sua fama, que representava uma enorme bagagem, e por onde ele ia era saudado com as devidas honras. Instalou-se em Mogi das Cruzes (1954), onde construiu um fabuloso mundo à parte, com o paisagismo típico de seu país de origem, contendo um Jardim das Oito Virtudes (Bade Yuan), tendo ao seu redor cinco pavilhões no tradicional estilo chinês (Wu Ting Hu) e um lago artificial complementando a paisagem, às margens do qual mantinha o hábito de enterrar seus pinceis depois que estes se tornavam imprestáveis pelo trabalho criador.

Deste seu paraíso em Mogi, que fui inundado por uma represa governamental, ele foi para a cidade vizinha de Taiaçupeba. Sua presença no Brasil, de 1953 a 1977, foi motivo de orgulho nacional e de diversas reportagens em revistas (com destaque para a Manchete) e jornais. Chang Dai-chien era então um mito inalcançável para o ainda candidato a discípulo Tai, que era apenas um iniciante em estado de adoração.

Hoje, infelizmente, a área em que Dai-chien construiu seu Éden está toda ela submersa por uma grande represa que abastece de água potável a cidade de Mogi das Cruzes. Os mestres se foram, do Brasil -e da vida terrena. Sun Chia-chin voltou antes para a China e Chang Dai-chien foi morar na California e depois seguiu para Taiwan. Tai Hsuan-an foi a semente que eles lançaram no desconhecido solo brasileiro, onde fincou, germinou e passou a dar seus muitos frutos inéditos.

Vale lembrar como a Escola Grande Vento começou. É Tai quem nos conta: “Quando o mestre Chang Dai-chien fez uma exposição no Louvre, na Paris de 1956, ele já era considerado um dos mais importantes pintores vivos da China. Por isso, teve o destaque que merecia, tanto quanto ao local da exposição, o mais renomado museu da capital francesa, quanto à importância dada a ela por autoridades orientais e ocidentais, e também por diversos artistas em destaque naquele momento”.

E dentre estes artistas, lá estava Pablo Picasso. Tai continua: “Conta a história que Picasso entrou na exposição com muito respeito e olhou detidamente quadro por quadro. Ao final, dirigindo-se ao artista, fez uma observação que para alguns poderia soar como elogio e, para outros, como crítica. Disse Picasso que naqueles quadros ele via uma realização de altíssima qualidade e da mais alta expressão do que seria uma arte conhecida e reconhecida como feita na China, mas que, no entanto, ele era incapaz de perceber a mão do artista. Em outras palavras, Picasso estava dizendo a Chang Dai-chien que suas pinturas eram ótimas, mas careciam de estilo pessoal e personalidade”.

Foi então que se iniciou uma grande mudança pessoal que ecoaria em toda a arte visual chinesa, pois o grande mestre levou muito a sério estas palavras. E desde aquele momento sua pintura passou por um processo de recriação e alterações profundas. Não da água para o vinho, como se diz no Ocidente, mas da tradição para a criação, como se constatou primeiramente no Oriente tradicionalista, não sem algumas resistências, pelo apego aos artistas e mestres do passado.

A observação colhida no Louvre serviu para o mestre Chang como um combustível para sua prolífica inspiração, diz o seu discípulo Tai. Ele então se soltou em pinceladas mais amplas ao retratar as tradicionais paisagens e demais motivos de sua pintura, passando antes a ‘manchar’ o fundo das telas, usando as técnicas de esparramar e salpicar tintas, como se fosse uma pintura abstrata, e a romper com outros cânones da tradicional pintura chinesa, como o uso extensivo da tinta branca e outras cores antes evitadas.

E foi assim, como tudo que dá certo e ganha importância, que Chang Dai-chien começou a ser seguido por outros artistas e acabou por fundar uma escola, que recebeu o nome de Grande Vento (que era como ele chamava seu ateliê), hoje com ramificações no Oriente e no Ocidente, e com a qual Tai se identificou e a ela se dedicou inteiramente. A tal ponto foi sua dedicação que, pouco antes da morte de seu mestre, em 2010, já há muito morando em Goiânia, um belo dia Tai atende o telefone e do outro lado da linha Sun Chia-chin lhe pede que vá a São Paulo, porque ele gostaria de lhe dar um presente que julgava ser muito precioso.

Foi um presente e tanto. Aliás, nesta ocasião Tai recebeu não um, mas dois presentes. O mestre começou por lhe entregar uma centena de folhas de um raríssimo papel de algodão de tamanho grande (100 x 220cm), formato fora de padrão e quase impossível de se achar, feitas na China de maneira artesanal, mistas de celulose e tecido. Algo de uma textura inigualável, folhas macias ao mesmo tempo que especialmente resistentes ao tempo, que não vincam e com as quais Tai faz hoje algumas de suas mais expressivas criações.

O outro presente foi imaterial, algo intangível mas não menos importante. O mestre segredou, não sem uma ponta de orgulho, que o seu discípulo Tai passara a constar nos manuais chineses como um dos mais importantes pintores vivos da linha Grande Vento (!!!).

Essa revelação o deixou nas nuvens, como se diz por aqui, mas sem perder o chão, como é típico do Tai, que por onde vai sempre nos mostra que se deve caminhar passo a passo, com planejamento e extrema dedicação. E sem alarde. Pois se tem uma coisa que Tai Hsuan-an não perde é essa sua simplicidade ínsita que, por vezes, o torna quase invisível. Seus modos se nos apresentam de uma maneira afável e com uma farta dose de humildade que lhe parece ser intrínseca, embora ele seja no mundo das artes uma alma de grande realeza.

Tai, ainda hoje (e assim sempre haverá de ser), pinta como aprendeu com os seus mestres chineses: a tela sem o chassis, deitada sobre o chão, na horizontal, virada para o céu. Nesta posição o tecido (ou o papel) é capaz de receber boas doses de tinta sem deixar escorrer. E o artista aproveita para espalhar as cores de maneira leve e ágil, com a gravidade a seu favor, por vezes utilizando também a seu favor o acaso, deixando-o se instalar ali sob seus pés e sob seu controle.

Só depois de ser trabalhado todo o fundo da obra é que a tela é levantada. A partir deste momento, com a obra na vertical e sobre um cavalete (se acontece de já estar no chassis), Tai começa a trabalhar os detalhes da pintura, que são quase infinitos, como quer a natureza, em um processo que depura, acrescenta, elimina, suaviza, acentua, chama, esconde, enfim, seguindo um fazer extremamente orgânico, que faz a tela parecer querer pulsar e, ao final, o artista poder dizer: pronto, agora é com você, começou mais um mundo! E parece que, de tão envolvente, de um momento para outro a pintura pode mudar, conforme o movimento do observador, assim como acontece com a natureza, conforme o movimento do sol.

Diante de suas paisagens ficamos esperando as folhas começarem a tremular e a terra exalar o cheiro inconfundível de seus quadrantes. O que Tai faz é uma arte de sinergias temáticas que convergem para resultados novos utilizando-se de elementos globais unindo as duas bandas da Terra, Ocidente e o Oriente. Suas telas são frutos de sua cultura hibrida, assimilada por muitas misturas geográficas e temáticas, e expressa artisticamente por meio de uma técnica pessoal e única que, também por sua vez, une os dois polos do Planeta e seus saberes.

Dito de outra maneira, seguindo o espírito de liberdade de seus mestres, Tai se expressa utilizando a técnica oriental com pequenas incorporações ocidentais. Assim, retrata uma variada temática tropical sobre fundo de paisagens reminiscentes, existentes somente em seu mundo particular, que ele cria de modo afetivo, a partir de sobreposições da memória.

OS MUITOS TAIS

Vamos por partes. Além do Tai pintor, que responde pelo seu lado de maior visibilidade, tem o Tai do desenho realista de aves e plantas. Este é o realizador, entre outros, de uma coleção de desenhos científicos com os quais vem sendo feita a paciente catalogação das espécies das araras brasileiras e todos seus gêneros (psitacídeos), algumas hoje rareando em seus habitats e outras já consideradas extintas. Para sua consecução ele faz pesquisas de campo, depois realiza estudos detalhados, que podem se repetir um sem número de vezes, e por fim recria as aves no papel em seus mínimos detalhes de formas e cores, incluindo a postura natural com que se exibem na natureza.

Nas ocasiões de suas pesquisas de campo Tai fotografa, faz anotações visuais e o estudo dos hábitos das aves, para depois retratá-las com muita calma e impressionante fidedignidade, em seu ateliê. O resultado é uma coleção que vai aos poucos tomando forma, contando já com mais de 70 imagens das cerca de 90 pretendidas. Todas na técnica mista do desenho e aquarela, em formato 50x70cm, que no futuro vão integrar um livro de interesse universal. Vale lembrar que os seus desenhos científicos mereceram o grande prêmio Margareth Mee (1993), outorgado pela Fundação de mesmo nome em conjunto com o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.

Digno de registro é a abertura com que o artista recebe e se atualiza com novas técnicas, sendo a mais recente delas a incorporação tecnológica que lhe possibilita o aplicativo Procreate para Ipad, que lhe abriu novas dimensões com sua interface intuitiva e recursos detalhistas.

Tem, também, o Tai escultor, com trabalhos na técnica da madeira (entre seus trabalhos está a decoração da Capela São José, no prédio da Pontifícia Universidade Católica de Goiás; do aramado e do papel machê; o Tai aquarelista, que gosta de trabalhar na calada da noite e faz cada obra de uma só investida, mantendo-o absorto por cerca de 40 minutos; o Tai gravador, principalmente na técnica da xilogravura, cujas matrizes são depois pintadas e transformadas em obras únicas; o Tai fabricante de brinquedos e engenhos, que são criados em sua pequena marcenaria montada junto ao ateliê.

E tem o Tai pesquisador, filólogo e escritor. Entre outros livros que publicou, não diretamente ligados a arte, tem o que se tornou o primeiro de seu gênero publicado no Brasil. É o “Ideogramas e a cultura chinesa”, único livro em língua portuguesa de linguística transposta do Oriente ao Ocidente, com a tradução comentada de 450 ideogramas, publicado em 2017 e já em terceira edição, com mais uma centena de ideogramas acrescentados, sendo até hoje a única publicação no Brasil sobre o tema.

Outro livro de destaque da sua lavra e pesquisas é o que compara sementes do cerrado com o design da atualidade, “Sementes do Cerrado e o Design Contemporâneo”, e outros livros como “Desenho e Organização Bi e Tridimensional da Forma” e “Design, Conceitos e Métodos”, todos eles imprescindíveis para aqueles que estudam os temas, revelando também uma outra importante faceta do artista: o Tai educador.

Radicado em Goiânia há quase 50 anos (chegou em 1977), além de uma carreira artística reconhecida e consolidada nos territórios da arte, Tai é professor de design e arquitetura na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), onde assumiu o lugar deixado pelo italiano frei Confaloni e tem se ocupado, nessas cinco décadas, em desenvolver métodos para liberar a criatividade dos alunos.

E não nos esqueçamos, tem o Tai arquiteto, formado na USP, considerada a melhor universidade do Brasil. A sua casa, no condomínio Aldeia do Vale, é um bom exemplo deste seu lado, sendo toda ela autoral, desde a concepção e o desenho arquitetônico, até o acabamento de pisos e escadarias. Foi tudo feito por ele, incluindo até mesmo o mobiliário, pois também tem, ainda, o Tai carpinteiro.

 

Tai Hsuan-an é um artista visual completo, poderíamos assim dizer. Sua arte vai pouco a pouco tomando uma grande forma e unindo impressões, ambientes, geografias, situações e narrativas que habitualmente estariam posicionadas em dois extremos: Oriente-Ocidente, China-Brasil, manchas-formas, abstração-figuração, amplidão-detalhes, brancos e cores, nitidez e bruma. Mas não se perde em dualidades, Tai elabora sínteses, por meio de convergências e conexões sutis. Ele prova em que vetores antagônicos podem ser complementares e, por fim, se tornar uma unidade harmoniosa: sua obra.

Na criação visual, os traços de Tai são próprios e inconfundíveis, guiados pela força gentil do talento que habita os grandes artistas. Cada uma de suas obras é a confluência de um aprendizado conquistado árdua e pacientemente, dosando os fatores da sensibilidade e da técnica, e ajuntando aos dois a experiência adquirida de uma extensa atividade ininterrupta que perpassa mais de sete décadas.

E “como não poderia deixar de ser” para uma mente tão dedicada, Tai é vítima de acontecimentos prosaicos que enriquecem o folclore dos artistas. Alguns já entraram para o anedotário da família, dos quais este texto não poderia se furtar de citar ao menos um exemplo.

Em um período em que estava ocupado intensamente com o magistério, o tempo que o artista podia tirar para pintar era tão somente o período noturno. Frequentar seu ateliê no centro da cidade estava perigoso, devido às atividades de ladrões de carro. Depois de lhe roubarem o primeiro, ele então bolou uma estratégia. Passou a colocar blocos de pregos escorando os quatros pneus, de maneira que estes seriam furados ao arranque do veículo. Tudo perfeito, não fosse por um detalhe: o próprio dono. Um dia, Tai esqueceu de retirar sua armadilha e ele mesmo furou seus pneus. Como não tinha quatro estepes, foi um a um levando-os para borracharia mais próxima.

E assim, Tai, felizmente ainda guiado pelo mesmo “pescoço” e mesma paixão já há mais de meio século, já com o primeiro neto integrado à família, para nosso gáudio é, também, uma grande alma goiana: Tai Hsuan-na, que ama pequi com guariroba.

Px Silveira

Biógrafo, produtor e curador de exposições do Tai desde a década de 1980, entre elas: “Elo a frente”, “Ateliê invertido”, “Saudações”, “Etc e Tai” e “Diáspora, Convergências e Conexões em 40 anos na arte de Tai Hsuan-an”. pxsilveira@me.com