Sobre o artista

SOBRE A PINTURA DE TAI HSUAN-AN

Por José Roberto Teixeira Leite

            Quando Tai Hsuan-An chegou ao Brasil tinha apenas 15 anos, e como todo imigrante trazia na bagagem uns poucos pertences; mas também trazia, impressos na alma, milênios de cultura e civilização da China onde nascera.

Os primeiros anos brasileiros, vividos no Paraná, foram penosos. Pouco depois, em São Paulo, o rapazola, nascido numa família de artistas e em quem a vocação despontara na infância, abraçou decididamente a pintura, tomando-a como objetivo e meio de vida.

Começou por pintar cavalos, que expunha e vendia na Feira de Arte da Praça da República – humilde prelúdio de uma longa e vitoriosa carreira que se estenderia pelas próximas cinco décadas e hoje atinge sua plena consagração. Mas atenção! – Pintar cavalos, para Tai, não era um trabalho qualquer; porque pintá-los, já o dissera Han Fei (falecido em 233 a. C.),  é muito mais difícil do que pintar fantasmas ou demônios, pelo simples motivo de que as pessoas estão familiarizadas com cavalos, ao passo que ninguém em perfeito juízo jamais deparou-se com demônios ou fantasmas; também é mais difícil do que pintar flores ou paisagens, que não exigem tanta habilidade do pintor para as reproduzir.

Na verdade, cavalos forneceram desde sempre um tema favorito aos pintores chineses, que lhes copiavam as formas, animais magníficos que são, mas, para muito além da mera aparência, buscavam captar-lhes em rítmicas pinceladas a essência, seus atributos e qualidades maiores  de nobreza, energia, elegância, inteligência, leveza, robustez.

No folclore e na pintura tradicional da China, o cavalo costuma ser associado ao princípio masculino Yang, à Luz, ao Céu e ao Imperador Filho do Céu; pode-se assim entender porque Yongzheng ordenou a Lang Shih-ning – o jesuíta Giuseppe Castiglione – que executasse uma grande pintura onde figurassem 100 cavalos, enquanto seu filho e sucessor Qianlong dedicou poemas entusiásticos a seus formosos cavalos afegãos.

Mas, voltando a Tai, pelo acima exposto fica-se logo sabendo que ele não precisou ter cavalos diante de si quando os pintava: ele os trazia no subconsciente, descendentes diretos daqueles, esplêndidos,  pintados em tempos da Dinastia Song por Li Gongli, Cao Ba e Han Huang; e os representava, oito séculos mais tarde, fiel à melhor tradição pictórica chinesa, em “galope voador”, suspensos no ar, congelados no tempo e no espaço, seus corpos reduzidos a manchas monocromáticas lançadas no suporte por ágeis golfadas de pincel, ele que em 2013, numa grande matriz xilográfica, representou 15 cavalos cujos corpos se sucedem e se entrelaçam, de modo a sugerir ao espectador nítida sensação de movimento.

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            O ano de 1969 representa um marco importante na carreira de Tai: data de então seu encontro com Sun Chia Chin, que acompanhara Chang Dai Chien quando da partida para o Brasil desse grande mestre, hoje considerado o maior pintor chinês do Século XX, e mesmo, para alguns, o maior pintor chinês em muitos séculos. Como aluno de Sun (que foi um erudito, além de pintor, escritor e professor, e criara e então ministrava, na Universidade de São Paulo, o curso de língua, história e civilização da China), Tai não apenas evoluiu tecnicamente, como também aprofundou seus conhecimentos sobre a arte e a cultura chinesas. A vinculação de Tai a Chang Dai Chien, através de Sun – e, para além de Chang, a todos os grandes mestres da antiga pintura chinesa -, muito contribuiu para a atual sabedoria pictórica do então jovem artista, ao lhe apontar as fontes em que se abeberar para plasmar um estilo próprio.  

            Em 1977, já formado em Arquitetura pela USP e mais familiarizado com a arte e a cultura ocidentais, Tai toma a decisão que mudará sua vida: transfere-se a Goiânia, onde logo é convidado a lecionar desenho e pintura em substituição a Frei Nazareno Confaloni, recém-falecido. Em sua primeira individual em Goiânia, realizada no mesmo ano, Tai ainda expõe pinturas obedientes ao estilo tradicional chinês, guohua. Mas já no ano seguinte sua produção tende a se modificar, sob a influência de novos cenários e ao contato com a arte e os artistas locais. Não que ele vá renegar – nem poderia – a herança de seus maiores: simplesmente passa a tempera-la com  o que lograva ver e assimilar no Brasil – não no Brasil litorâneo ou no das grandes metrópoles, mas no interiorano, nessa Goiás que seria desde então e até hoje seu verdadeiro país, entendendo-se o vocábulo em sua acepção original de rincão onde se nasce, vive e trabalha. Tai nasceu na China, é verdade; mas renasceu em Goiás  – Guoiás – , fascinado pelo Cerrado, com suas araras, periquitos e papagaios, borboletas e beija-flores, girassóis e ipês amarelos, as bananeiras, os fundos de quintal… Tudo isso ele viu, sentiu e assimilou; tudo isso pintou, desenhou, gravou e esculpiu, sobre tudo isso meditou e inclusive escreveu livros.  Sucedem-se assim, em sua produção,  as sucessivas interpretações da natureza goiana,  observada do natural ou imaginada (quando não sonhada), as grandes telas em que busca deter o  tempo, ou nas quais o gesto criador deixa na superfície pictórica o sulco de sua passagem, as composições abstratas bêbedas de cor, as recriações a partir das sementes do Cerrado, as esculturas em papelão… Hoje em plena maturidade, autor de obra vária e valiosa – e como tal reconhecido, Tai Hsuan-An cumpriu o vaticínio feito em 1962 por He Zhixiang, seu primeiro mestre: traçou com seus pinceis uma esplêndida vida, para se transformar num grande pintor do Séc. XXI.

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José Roberto Teixeira Leite é jornalista, professor, curador, perito em artes, escritor, historiador e crítico de arte. Tem publicado o livro “A China no Brasil: influências, marcas, ecos e sobrevivências chinesas na sociedade e na arte brasileiras”, entre outros.